Carta a José Mário Branco #2
by on Maio 25, 2020 in De rua em rua

Caro José Mário Branco,

Já passou algum tempo desde que saímos juntos da sala de estúdio da Valentim de Carvalho.
Só agora tive força para escrever-lhe e retomar o trabalho que iniciámos juntos.
Não acreditaria se lhe contasse o lugar em que o mundo se tornou desde Novembro.
Consigo imaginar a sua perplexidade perante este cenário. Ou talvez não.
Estamos todos a caminhar para um tempo de incerteza de que sempre falou.

De cada vez que vejo estas fotografias fico a pensar nas mudanças que a vida nos trouxe, em tão pouco tempo.
Olho para o meu filho, vejo-o crescer e dou-me conta todos os dias que já cá não está o amigo que lhe agradeceu por existir.
Acredito que a sua sabedoria transcendia as palavras: tinha sempre a humanidade por trás de cada olhar, de cada afecto.
A crença de que nada pode durar e de que, exactamente por isso, se torna urgente abdicar de todas as tretas fúteis e ampliar o amor entre os homens.

Sempre que penso na sua ausência, sinto que a vida foi ingrata.
Ainda não consigo ver só o lado bom de ter tido a sorte de me cruzar consigo.
Vem sempre uma voz meio trémula, meio estranha, a suplicar que é preciso continuar, é preciso ter ânimo.

O trabalho que iniciámos juntos foi em grande parte movido pela sua dedicação e entrega.
Foi como se eu lançasse a ideia e o José Mário moldasse o pensamento, como um poema completo que se vislumbra num compasso de silêncio.
Essa motivação foi maior que todas as minhas escolhas.
É nesse ponto que se ergue a confiança e se cria um ponto de partida.
Mas entre o ponto de partida e o momento em que lhe escrevo, o tempo expandiu-se para muitos anos dentro de mim.

Desde a noite do 18 de Novembro, depois de termos terminado o último tema do disco e de nos despedirmos, guardo ainda a mesma sensação em todos esses dias que passaram.
A sensação de que, em breve, celebraremos juntos esta parceria.

Dedicar-lhe este disco será muito pouco. Hei-de contar a vida inteira as histórias das duas semanas que trabalhámos em estúdio.
Dos dois anos de ensaios, reuniões, conversas, cartas, preparações.
A minha relação com este disco nunca será pacífica.
O nosso encontro foi o começo de uma longa aprendizagem.
Para mudar. Para crescer. Para vislumbrar novos céus.

Será sempre um mistério a honra da sua presença.

Lembro-me de quando disse ao meu filho que adorou tê-lo conhecido.
E que era ele quem me iria ensinar tudo o que eu precisava de aprender para ser feliz.
Ainda o seu sorriso e o seu acenar me acompanham a cada novo dia.
E continuam a ser as primeiras e as últimas imagens do disco que construímos juntos.
Vou respeitar cada palavra, cada nota que gravámos.

Tenho a certeza que um dia havemos de nos ver, algures, por aí.
E onde quer que seja, espero encontrar aquela mesma paixão no seu olhar sempre que falava da Música.

Feliz aniversário, Mestre.
Um abraço para si, para a Manuela e para toda a sua família.

Lisboa, 25 de Maio de 2020

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