Caro José Mário Branco,
Já passou algum tempo desde que saímos juntos da sala de estúdio da Valentim de Carvalho.
Só agora tive força para escrever-lhe e retomar o trabalho que iniciámos juntos.
Não acreditaria se lhe contasse o lugar em que o mundo se tornou desde Novembro.
Consigo imaginar a sua perplexidade perante este cenário. Ou talvez não.
Estamos todos a caminhar para um tempo de incerteza de que sempre falou.
De cada vez que vejo estas fotografias fico a pensar nas mudanças que a vida nos trouxe, em tão pouco tempo.
Olho para o meu filho, vejo-o crescer e dou-me conta todos os dias que já cá não está o amigo que lhe agradeceu por existir.
Acredito que a sua sabedoria transcendia as palavras: tinha sempre a humanidade por trás de cada olhar, de cada afecto.
A crença de que nada pode durar e de que, exactamente por isso, se torna urgente abdicar de todas as tretas fúteis e ampliar o amor entre os homens.
Sempre que penso na sua ausência, sinto que a vida foi ingrata.
Ainda não consigo ver só o lado bom de ter tido a sorte de me cruzar consigo.
Vem sempre uma voz meio trémula, meio estranha, a suplicar que é preciso continuar, é preciso ter ânimo.
O trabalho que iniciámos juntos foi em grande parte movido pela sua dedicação e entrega.
Foi como se eu lançasse a ideia e o José Mário moldasse o pensamento, como um poema completo que se vislumbra num compasso de silêncio.
Essa motivação foi maior que todas as minhas escolhas.
É nesse ponto que se ergue a confiança e se cria um ponto de partida.
Mas entre o ponto de partida e o momento em que lhe escrevo, o tempo expandiu-se para muitos anos dentro de mim.
Desde a noite do 18 de Novembro, depois de termos terminado o último tema do disco e de nos despedirmos, guardo ainda a mesma sensação em todos esses dias que passaram.
A sensação de que, em breve, celebraremos juntos esta parceria.
Dedicar-lhe este disco será muito pouco. Hei-de contar a vida inteira as histórias das duas semanas que trabalhámos em estúdio.
Dos dois anos de ensaios, reuniões, conversas, cartas, preparações.
A minha relação com este disco nunca será pacífica.
O nosso encontro foi o começo de uma longa aprendizagem.
Para mudar. Para crescer. Para vislumbrar novos céus.
Será sempre um mistério a honra da sua presença.
Lembro-me de quando disse ao meu filho que adorou tê-lo conhecido.
E que era ele quem me iria ensinar tudo o que eu precisava de aprender para ser feliz.
Ainda o seu sorriso e o seu acenar me acompanham a cada novo dia.
E continuam a ser as primeiras e as últimas imagens do disco que construímos juntos.
Vou respeitar cada palavra, cada nota que gravámos.
Tenho a certeza que um dia havemos de nos ver, algures, por aí.
E onde quer que seja, espero encontrar aquela mesma paixão no seu olhar sempre que falava da Música.
Feliz aniversário, Mestre.
Um abraço para si, para a Manuela e para toda a sua família.
Lisboa, 25 de Maio de 2020