Meu bem,
Leio e releio todas as cartas que me enviaste enquanto estive em Nova Iorque. Não imaginas como o mundo está a avançar. Tenho conhecido tantas pessoas como eu, constantemente em viagem. Partilhamos as mesmas convicções e as mesmas incertezas. No tempo que tenho estado no mar, tenho aprendido a não ter medo de nada e a ter medo de tudo. É tudo tão passageiro e tão fugaz que às vezes até perco o sentido de mim mesmo.
E o mundo continua a avançar. Fala-se imenso em desenvolvimento tecnológico por aqui. Tenho visto tantas invenções e tantas máquinas novas que nem consegues imaginar. Mas continua tudo no meio de uma maldita guerra.
Creio que vai levar muito tempo até que todos sejamos absolutamente livres. É imperativo que cada um de nós procure construir o caminho do bem. Acredito que chegará o dia em que todos se juntarão numa enorme euforia para uma revolução que se adivinha inevitável. A revolução pelo fim da guerra, pelo fim de todas as guerras.
Tenho saudades de Lisboa, de ouvir os pregões da nossa cidade. Da luz que nos entra pelo quarto enquanto os nossos meninos vão acordando. Dos becos e vielas da minha Alfama velhinha.
Lembro-me sempre daquela casinha no Beco do Azinhal que te falei. Era tão bom se pudéssemos pensar num lugar onde receber os nossos amigos, os poetas, os compositores, e onde eu pudesse estar a partilhar a música com toda a gente, como se fosse a nossa casa. Um espaço onde possamos ser boémios à solta e beber toda a alegria das nossas vidas. Já não imagino isso noutro sítio a não ser ali.
Sonho muitas vezes que já não preciso de viajar mais, que posso estar onde quero. Pudesse o tempo abrandar um pouco para eu viver cada instante único contigo, em cada rua e em cada brilho das noites que ainda vamos viver os dois. Tudo seria mais calmo para mim em terra firme. Se soubesses como estou convicto que em breve teremos essa paz…
Pudesse ser eterno o teu abraço em cada momento que dizemos adeus.
Do teu António
Nova Iorque, 12 de Maio de 1944