A crueza da vida
Como a poeira do tempo
Dorme em cada noite esquecida
Na penumbra da solidão
A imagem da incerteza
Em cada boca calada e suspensa
Um mal que nunca se revela
Uma lágrima que se não deixa correr
A velha sombra da criança que fomos
A dormir ao relento sem mãe
A contemplar a rosa negra do mundo
Tudo o que perdemos, tudo o que gastamos
Tudo o que nos falta para morrer
Não temos nada mais que esta bebida
Mais que esta raiva apetecida
E caímos desfeitos pedaços de humanidade
Chão de pedra, chão de nada
No meio da multidão arrastada
Todas as horas que não vivemos
Voltam entre razões que amarguramos
Chamamos de tempos a tempos a insanidade
Renascemos em vão dentro da inutilidade
Somos a equação perdida num aneurisma
Nunca chegaremos a ter palavras
Nunca seremos o apogeu da arte
Temos menos sonhos do que os mortos
Morremos na noite escura do pensamento
Criamos vozes de medo ao nosso redor
Matamos o tempo em vez de nos extasiarmos
Traímos a rosa dos ventos, a rosa da carne
Alguém nos ensurdeceu os sentidos
Tiraram-nos o prazer de ter nascido
Não temos sossego nem madrugada
Destruímos o intento de batalhar
Guerreamos a eternidade do que é efémero
Somos vazios no espaço infinito da derrota
Corremos por veredas onde ninguém nos vê
Sobrevoamos os dias inglórios de haver lutado
Por toda a parte a impotência das nações
Nos olhos da escuridão de quem sonha
Não há-de haver nem um silêncio a mais
Não há-de haver nem um silêncio a menos
A noite vem e lembrará quem somos
O tempo vem e lembrará quem fomos
(Escrito na noite de 5 de Setembro de 2017 na rua da Atalaia)